sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Universal e Lendária

Enquanto lia o emocionado livro de Patti Smith ("Só Garotos"), deparei-me com uma nota mental que talvez fosse mais um pleonasmo cerebral, dentro da linha de raciocínio, do que ideia prima. Grandes artistas parecem transitar dentro de uma aura de amálgama de alma que transcende o tempo. Independente do tique-taquear, esses detentores de navalhas que cortam ou curam inadvertidamente nosso espírito, conseguem fundir sua arte no maior número de direções. E o fazem de maneira pulsante, giratória e precisa.

A capacidade de fusão da cantora PJ Harvey passa pelo tempo (como em Dry, lançado literalmente na época do grunge seco), caminha pela vida em relação ao mundo habitado (Stories From The City, Stories From The Sea) e contempla a beleza disforme da experimentação que todos passamos em algum momento de nossas passageiras horas (White Chalk). Existe dentro de suas canções uma milimétrica porém espessa camada do que se é e do que se sente. Os caminhos traçados pela poesia de Polly Jean são determinados pela direção indefinida que ela tomará à seguir. E não existe estudo geográfico para a alma humana...

Em Let England Shake, a cantora torna-se ao mesmo tempo universal e local. A ideia seminal de colocar em um disco canções que falam sobre a batalha ocorrida em 1915, onde ingleses e franceses tentaram retirar a Turquia da Primeira Guerra Mundial, é antes de mais nada original demais. Ainda mais quando descobre-se que a Campanha de Gallipoli (como é conhecida), ao tentar romper Constantinopla, fracassou. As perdas humanas incontáveis como pano de fundo e a visão da cantora sobre a própria nação mãe, já fariam desse novo disco algo obrigatório. Mas não é só isso. Aliás, essa é só a ponta do vulcão.

Existem conjunções kármicas que parecem acompanhar Let England Shake, mostrando que talvez 1915 não tenha sido escolhido por acidente. Esse ano foi marcado por, além da batalha em Constantinopla, algumas mudanças importantes musicalmente falando. O cenário do mundo da música foi varrido por compositores clássicos. Artistas que usaram um formato conhecido e o transcenderam em algo maior. Villa Lobos realizou seu primeiro concerto, do mesmo jeito que Richard Strauss estreiou a Eine Alpensinfonie, sob sua regência. O compositor espanhol Manuel de Falla compusera uma das mais importantes peças da música espanhola, as Siete Canciones Populares Españolas. Essas canções subvertiam o conceito da folclórica guitarra espanhola somada à música clássica. Em 1915 nasceram Edith Piaf, Frank Sinatra e Orlando Silva. Verdadeiro capricho do destino.

PJ Harvey faz a mesma coisa que seus antecessores seculares. Desconecta o clássico do gênero e provoca mudanças ora tsunâmicas, ora mais singelas. Mas a poesia e magia dessas mudanças são de beleza descomunal. E isso pode ser sentido no uso não convencional da linha de metais em "The Words That Maketh Murder" ou nas marimbas caribenhas de "Let England Shake". Mesmo quando a guitarra faz-se presente (instrumento que explodia distorção no disco To Bring You My Love) em canções como "The Last Living Rose", torna-se apenas uma coadjuvante. Uma folha em papel branco escorrendo um pequeno traço de cor amarela, tornando-se parte do mais lindo caleidoscópio cheio de metais pesados. Nuance que pode ser sentida também em "All and Everyone".

Não existe uma categoria onde se encaixe melhor o novo disco de PJ Harvey. Rotular o álbum por algum gênero é muito distante do real. Como em Constantinopla, o local onde o mundo se encontrava, a cantora propõe uma viagem universal pelos antepassados da humanidade. Pegando seus ouvidos pelas mãos com um amor quase tavernal e trazendo sua alma com cuidado, mesmo quando a letra da canção é pesada como em "In The Dark Places", nenhum pedaço de seu corpo é deixado de lado ou para trás, pois a maravilhosa voz de Harvey os transporta por lugares onde existe apenas tempo de reflexão.

Let England Shake definitivamente marca o amadurecimento de Polly como cantora. Sua voz é o instrumento mais belo de todo o disco, o que é claramente emocional dentro da canção "On Battleship Hill", formada apenas por vertentes clássicas das notas e a distorção faríngea da cantora. Esse conjunto é carregado em emoção e de beleza ímpar. Como na cultura da música turca e otomana, a cantora monta um palácio (local onde aconteciam as manifestações artísticas dos reinos turcos) onde há mistura de folclore, guerra, religião e clássicos que traduzem toda uma insatisfação atual com o modo de vida do ser humano. Não é de graça que a canção "The Words That Maketh Murder" tem uma relação íntima com as músicas do gênero Asker (estilo de música turca que tem como mote a guerra, usada antes de batalhas, inclusive as referidas em 1915).

PJ Harvey aprendeu a alquimia da transcendência. O fez de maneira genial e, como todo ser elevado, humildemente. Abre caminho para os backing vocals tomarem a liderança em "The Colour Of The Earth", onde John Parish mostra uma leveza descomunal. Em outro momento consegue maestria binária, com o sampler da banda Niney The Observer (a canção "Blood and Fire") com "Written On The Forehead". Seja da maneira analógica ou com alquimias digitais, PJ Harvey conseguiu em um só álbum juntar história do mundo e da música, crítica social pesada em relação ao comportamento inglês (e obviamente do ser humano de maneira geral). Conseguiu também transcender o limite entre o simples artista e a lenda. Polly Jean agora pertence ao Olimpo onde habitam Neil Young, os Beatles, os Rolling Stones e Bob Dylan.



1 comentários:

Lucas Lima disse...

Só pra ficar claro que esse 10 que o Fábio deu é 10/10, e não 10/100 ou 1/10. Ou seja, a nota máxima.

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