terça-feira, 20 de julho de 2010

Resenha: A Linha Tênue Entre o Som e a Explosão

POSTADO POR FÁBIO NAVARRO - 20/07/2010

Quando Stuart Braithwaite e Dominic Aitchison conheceram-se em Glasgow no ano de 1991, imagino que ainda não tinham em mente que os sons criados por eles seriam mais conhecidos por serem sinônimos de palavras como lisergia, distorção e vulcânico - do mesmo jeito que quatro anos depois não pretendiam colocar nenhum significado através do nome que escolheram para a banda. Mogwai é a espécie das criaturas do filme cult dos anos 80 Gremlins e por mais que não tenha-se nenhuma correlação com os bichos do filme, uma coisa eles tem em comum. Ambos, quando expostos à certas condições de temperatura e umidade, são capazes de provocarem reações explosivas espontâneas.

A comparação mais evidente que se tem é em uma cena onde a criatura se molha e de suas costas crescem bolhas que com o passar dos segundos explodem dando origem à outros seres. O som do Mogwai é assim, capaz de criar bolhas de combustão que transformam-se em acordes completamente decassílabos e de saídas nunca imaginadas. Do mesmo jeito que no filme, nenhuma música é realmente apenas um ser fofinho de pelúcia.

Isso é evidente em cada acorde desse mega lançamento de 2010. O primeiro CD/DVD ao vivo da banda, Special Moves, pode receber essa denominação não somente pelos tracklists das versões em vinil triplo e CD, mas também pela quantidade de formatos lançados. Existe a versão CD + DVD que é acompanhada do download gratuito de uma das canções do vinil ("New Paths to Helicon Pt. 1"), e uma versão especial com o vinil mais todo o pacote anterior e ainda uma versão digital com o conteúdo todo. Além disso, você ainda poderia escolher comprar a camiseta da banda em todos os pacotes, ou seja, cobrindo todas as bases. Desconto seja dado por que sempre existe o vazamento dos discos bem antes deles serem lançados. Mas mesmo assim a estratégia foi boa.


E todo esse cuidado com o lançamento desse primeiro registro ao vivo e sucessor do sensacional The Hawking Is Howling (2008), não é algo desnecessário. Do início ao fim do disco, a sensação de que você está pregado em uma das asas de um jato supersônico percorrendo um caminho por entre dois desfiladeiros e seu rosto corta o ar rente ao chão é inerente. Impossível não ater-se ao fato de que a banda escocesa mesmo tendo sido influenciada por nomes como Slint (que teve seu primeiro álbum produzido por Steve Albini), Pixies, The Cure (bandas com as quais o Mogwai já realizou turnês), Fugazi e My Bloody Valentine, desenvolveu um som tão singular e próprio que acabou tornando-se referência no movimento chamado de noise e influenciou muita gente (a espetacular banda brazuca Herod Layne por exemplo).

Mas aos fatos: "I'm Jim Morrisson And I'm Dead" não poderia ser uma escolha melhor para abertura dos trabalhos. O funeral é instalado pelo piano logo no início, ao fundo um fio de guitarra crescente e suave, como um zunido insistente na hipnose. Tudo bem marcado na linha reta da bateria que apenas pulsa velocidades em veias que aos poucos vão abrindo-se. Ao inicar-se o terceiro minuto todo a amálgama já está em ponto de fusão. A aterrorizante sensação de que a terra escorrega por entre as laterais da cova espalha-se pelo seu corpo, mas a mudança para o peso do chão se fechando é de tamanha sutileza que jamais seria possível sentir nada que não fosse uma elevação sensorial aguda. Seis minutos onde a beleza da navalha de acordes torna-se sublime mescalina. E você só descobre que está ouvindo um disco ao vivo no final da canção, pelas palmas. Como a platéia da casa, seu corpo está inerte e em hipnose.

"Friend Of The Night" reinicia quase no mesmo acorde final da primeira canção, mas dessa vez a distorção vem como convidada principal, sendo conduzida pelo piano e a bateria que já ensaia viradas secas. E existe nessa canção uma qualidade bem definida: a de que na banda não existe uma virtuose instrumental. Mesmo sendo músicos excepcionais, o som do Mogwai tem muito mais sentido quando se sente cada partícula de sujeira de garagem nos acordes. Distorção misturada com notas que podem sintonizar-se com adágios como o de Samuel Barber. É como sentar-se à beira do mar e conseguir ouvir cada centímetro de onda que se forma e quebra nas rochas, estalando em sons explosivos. Domados por entrecantos psicodélicos, como no caso da canção "Hunted By A Freak", uma das mais curtas do disco (4:31) mas com efeitos atordoantes dentro dos instrumentos que são capazes de fazer gelar sua espinha. Ao final dessa primeira parte da viagem a banda se apresenta:

"Olá, nós somos o Mogwai de Glasgow e estamos felizes por estarmos aqui!"

Temos apenas tempo de acenar...


"Mogwai Fear Satan" é construída passo à passo com acordes crescentes. Em sua primeira parte as guitarras de Stuart Braithwaite, John Cummings e Barry Burns são simétricas em notas, mas quando a bateria de Martin Bulloch inicia a caminhada por viradas cada vez maiores e precisas, cada um dos três inicia uma corrida individual que é composta de distorções que vão variando de intensidade enquanto as cordas são literalmente postas em atrito constante e sônico. Lembra da sensação de estar colado em um jato? Pois bem: pode abrir os olhos e sentir o vento das pedras roçando seu cabelo. A canção entra em estado de acordes minimalistas, quase como se fosse possível ouvir cada corda sendo tocada individualmente. Não há espaço para ouvir a respiração da platéia, pois está tudo em tamanho estado de suspensão que a tensão elétrica do ar é palpável. Como se fosse possível parar na entrada de um longo túnel escuro onde apenas o que se vê é um pequeno raio de luz no final ao longe. Toma-se o ar profundamente e prende-se a respiração, aí é quando as guitarras te catapultam sem freio a uma velocidade incomparável. Seu rosto deforma pelo vento que bate com virulência fantasmagórica e velocidade ainda mais forte. Distorção sagrada que poucas vezes pode ser sentida assim em cada neurônio que pulsa enquanto as paredes do túnel passam através de seus olhos inchados. Frenagem brusca marca o final da canção, mas aí já é tarde, seu coração já saiu pela boca.

"Cody", que é a quinta música, vem com uma pequena letra. Mais metódica do que as anteriores e de ritmo cadenciado, mantendo um fluxo constante de informações. Espanta-se que uma canção tão bela possa sair de uma banda que toca tão alto quanto o Mogwai, mas esse disco mostra toda a versatilidade da banda. Não existe uma linha reta e sim várias paralelas que mantém seu olhar eletrizado. Outra característica sensacional, é o fato de um disco de rock fazer com que o ouvinte não apenas ouça as canções, mas sim aprecie cada nota. Desse jeito a experiência torna-se minimalista e ao mesmo tempo complexa, na verdade muito mais completa.

E é com essa mentalidade que se deve ouvir " You Don't Know Jesus". Um quebra cabeça flutuante onde as notas são múltiplas como se fosse possível enxergar linhas de lava que correm ao lado uma da outra e quando os maiores pontos são alcançados elas se cruzam dando início a uma poderosa corrente que explode na boca do vulcão, tornando-se uma massa sólida que pinta o céu de vermelho e cinzas distorcidas. É como sentir seu peito sendo dilacerado na velocidade da luz e reconstruído alguns milésimos depois. Jonathan Osterman deve ter sentido isso quando o pulso eletromagnético dilacerou seu corpo átomo por átomo.


"I Know You Are But What I Am" volta com a lisergia. Pedaços elétricos percorrem os efeitos de guitarra. Não existe a necessidade de complexos candelabros em forma de solos, apenas uma gigantesca capacitância de elétrons que formam eletrosferas disformes e perfeitas. O som é pesado e contido, abarrotado de sensações pulsantes. O começo da canção "I Love You, I'm Gonna Blow Up Your School" vem diferente. Uma linha de baixo percorre martelando quilhas de titânio durante todo o tempo. Torna-se ator principal enquanto as guitarras apenas acompanham.

E aqui cabe mais uma das características da banda que a faz com que ela seja uma das melhores já surgidas dentro do cenário. Desde quando o rock nasceu, nossos queridos amigos músicos sempre fizeram algo para chocar e muitas vezes serem repugnantes propositalmente. A pélvis de Elvis, as cusparadas dos Pistols ou o escárnio de Kurt Cobain. Mas com o passar do tempo e ainda mais agora nessa época onde o mundo anda cada vez menor, parece que não existe mais nada que uma banda possa fazer que seja chocante demais ou vanguardista demais. Os sons muitas vezes parecem sempre ter saído de algum lugar já vivido. Cópias de cópias e mesmo com o esforço de todos, as notas repetem-se. Mas é aí que o Mogwai se mostra maior, como uma banda que em 2010 ainda é capaz de pronunciar em alto e distorcido som que existe a capacidade inexplorada de fazer com que o ouvinte seja bombardeado com inúmeras nuances originais. Choca ao ouvir e talvez as cócleas originais acostumadas possam até achar que é tudo muito barulhento demais, mas sair da latência pop que nossos ossículos se viciaram não é uma coisa fácil. Desintoxicar-se do marasmo requer uma dose extra de guitarras altas. E a canção "2 Rights Make 1 Wrong" é isso.

Dose extra de sonoridades espantosamente bélicas e recobertas de sons que destoam de tudo o que você pode chamar de moderno. Não é fácil, muito menos aberto ao público pop, mas é de uma beleza demolidora de paradigmas requentados em nossas vidas. A liberdade da alma passa pela distorção do Mogwai. A essa altura a banda anuncia que tocarão apenas mais duas canções, uma delas é "Like Herod".


Após os agradecimentos, em sua imaginação guiada pelas guitarras e a bateria anestésica, monta-se a figura de um homem cercado pela fumaça exposta de seu cigarro colado no lado esquerdo de sua boca. O clima frio iluminado pelas linhas retas do feixe de luz vindos de um poste descrevem toda a névoa que agora faz parte da linha de baixo de Dominic Aitchison. Uma leve respirada desse homem que traga seu cigarro com uma inspiração prolongada é anunciada pela pausa da banda que nesse momento apenas coloca acordes leves e quase silenciosos. Então no próximo milésimo de segundo, uma armada apocalíptica comandada por distorções que voam como cavaleiros negros do fim do mundo explodem. O homem que recosta seu casaco na lateral do poste frio saca uma arma e começa um ricochetear de balas em direção aos cavaleiros. As guitarras são absurdamente agudas e gritam cada vez mais alto, recortando a pele do homem que em vão grita com ódio, salivando pelo canto esquerdo de sua boca. O cigarro cai, as guitarras entram em transe mínimo.

Pausa...

Com uma guinada mais violenta que a anterior, a banda explode em contrações epiléticas e destrói o corpo do homem com rajadas de riffs cada vez mais dilacerantes. Seu peito parece não querer aguentar tamanha a pressão exercida pelo baixo e aos poucos toda a pele deste senhor armado derrete-se e sublima atraves da névoa. Nas guitarras um cheiro de pólvora...

"Glasgow Megasnake" além de ser mais uma canção com nome sensacional, marca o final apoteótico do disco. Pesada tanto quanto tonelada tectônicas de adamantium, é talvez a canção mais fácil do disco. Nem por isso deixa de ser uma lição sobre como fazer uma perfeita música cheia de inteligentes acordes e saídas cada vez mais acachapantes e claustrofóbicas. O final é seco como corte rápido na carne, nem precisava mais. Seu corpo pede uma calma que talvez o Mombojó traga.

Special Moves não é apenas um disco, é uma lição onde uma banda é capaz de mostrar a originalidade levada às últimas consequências permeadas por uma linha tênue, que divide o som e a explosão.

Mogwai - Special Moves (2010)


Nota: 9,75

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