domingo, 26 de setembro de 2010

Resenha: A Peregrinação Jurássica

POSTADO POR FÁBIO NAVARRO - 26/09/2010

Como e por onde determinar a qualidade em uma lenda é coisa que não se faz. Primeiro porque a palavra já carrega uma responsabilidade absurdamente cavalar, depois o simples fato de você, mísero mortal dotado de oposição do polegar, tentar gabaritar uma obra desse peso parece no mínimo pedante e prepotente. Mas por ser tarefa quase exclusiva de seres como Teseu, a natureza humana de afrontar os paradigmas torna a empreitada mais atraente. Quem sabe não apareça nenhuma Ariadne capaz de guiar seu caminho de volta nesse labirinto minotáurico.

Neil Young provavelmente é um dos maiores músicos vivos da história do rock. O canadense que venceu um aneurisma e pediu a queda de Bush é um gênio em vários sentidos. Seja por flertar com variadas vertentes dentro do rock, ou por construir paredes sólidas de riffs em um disco e depois destruí-las com a mesma maestria. A carreira com o Buffalo Springfield (até 1968), os discos memoráveis com Crosby, Stills and Nash (Dejá-Vu de 1970 e CNS de 1977) e as lendárias bolachas com o Crazy Horse (Everybody Knows This Is Nowhere, 1969 e a dobradinha Rust Never Sleeps e Live Rust de 1979), são muito mais do que simples discos. Participam da categoria de experiências sonoras completas, com alma e coração.

Por isso nos primeiros acordes de Le Noise, uma coisa parece certa. Neil Young não quis reinventar a roda. O disco parece algo prensado nos anos 60 ou 70. Oito músicas com uma duração completa de 40 minutos e mais nada. Formato clássico, mas a mesma quantidade de genialidade vem acompanhada de uma estranha sensação de marasmo.

Concordo quando se diz que com Neil ou adora-se ou se é indiferente. Lembro de assistir a transmissão pela TV do show do Crazy Horse no Rock In Rio 3 e durante a apresentação muitas vezes ter uma sensação de arrasto às profundezas mais diabólicas do tédio. Demorei a entender que com as canções do homem de ferro da guitarra, as horas não poderão jamais serem calculadas ou contadas. Existe uma linha de consciência zen-budista que forma um invólucro sagrado por entre as notas. Com Neil tudo tem uma equação bem concatenada e que é respeitada de maneira sunita pelo músico. Nada será alterado em velocidade só porque os tempos twitterianos pedem. Se uma nota é longa, então assim será. Se a canção denota uma duração maior, pode esperar sonatas de quase oito minutos.

Mas Le Noise busca um equilíbrio constante. Existem canções como "Peaceful Valley Boulevard", com seus sete minutos e quarenta de violões folkianos sussurrados por entre uma letra quase eclesiástica. A voz de Neil parece orar em cada nota, mas se você busca algo muito mais ramônico sem doses de comtemplação, essa não é a sua faixa. Talvez seu momento seja mais na música "Someone's Gonna Rescue You", onde os sons distorcidos em efeitos ecoam por toda a faixa. Neil trova mais uma vez por entre um grito de socorro abafado. O músico nesse disco, mesmo voltando ao básico, consegue anatomizar cada nota da guitarra e disseca os acordes de maneira brilhante, perdoáveis até as falhas na voz de Neil que já mostra sinais faríngeos. Essa mesma distorção retirada camada por camada é vista em "Sing of Love", que tem a assinatura do canadense em toda a extensão. Sente-se um ar de recordação, pois o disco tem esse clima de revisão do vasto material gravado por mais de 30 anos.

"Love and War" é confessional até a última estrofe. Nessa altura os ouvintes serão divididos entre aqueles que adoram e os que estão de passagem. Apreciar o trovadorismo de Neil Young requer uma coleção de segundos e minutos que possivelmente estamos fadados a não ter mais. O músico desafia quem ouve a manter-se atento, colado em cada variação de nota e a cada solo. O mantra encoberto de nunaces latinas do violão mantém a peregrinação lenta, mas acaba fazendo um contraponto quase perfeito com a canção seguinte. "Angry World" tem a assinatura política de Young, abafada por uma nuvem de gafanhotos em loopings assimétricos cheios de efeitos. Um corte seco por entre as nuvens deixa entrar um pouco de claridade nesse mar cinza, em uma faixa quase febril e caleidoscópica.

Quando "Hitchhiker" entra, uma parede sonora ergue-se por entre mais efeitos. O abuso na quantidade dessas férricas reverberações vocais acaba deixando de lado a característica de velocidade que a música tem. Mesmo com o martelo thoriano de Neil, a sensação de que pode ser demais prestar atenção em tantos minutos acaba sendo um pouco claustrofóbica demais. Muitas vezes o peso pode ser um sonífero poderoso anti-anfetamínico. E o tempo nem é tão longo.

E quando os acordes de " Rumblin" aproximam décadas de sombra, existe a sensação de que assistimos à uma aula longa demais, mesmo sendo apenas um pouco mais de meia hora na audição. Neil Young pede um esforço mental que talvez nosso cérebro ainda não queira fazer. Uma libertação da rapidez para a contemplação que os tempos de ídolos em forma de supernova cadente talvez não apreciem. Essa volta às origens foi conduzida da mesma maneira brilhante que Neil Young sempre teve. Mas apreciar um disco como Le Noise sem ser fã do cantor pode pareder uma tarefa árdua demais.

Separe um tempo para ouvir o disco mais de uma vez. Descobrir notas de um dinossauro sábio como este pode ser edificante. Mas saiba que nada será digerido de maneira fácil; a alma de Neil Young tem longos caminhos e ele faz o ouvinte passar por todos sem exceção.

Neil Young - Le Noise [2010]


Nota: 7,8

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